Em Pobres Criaturas Yorgos Lanthimos mostra que o cinema é muito mais do que estamos acostumados a ver ultimamente.
O grande problema do cinema de Yorgos Lanthimos, para mim, sempre foi o quão frio ele era. Na busca por enfatizar os comentários inseridos em seu trabalho, obras como “Dente Canino” (Dogtooth) e “O Lagosta” (The Lobster) acabavam soando muito estéreis e vazias. Depois do entendimento preliminar do tema, o que se via em tela era apenas a repetição de cenas dirigidas de maneira apática para deixar claro sua sátira às convenções sociais. Isso tudo mudou em “A Favorita”. Apesar do tom ácido presente nas obras anteriores, tanto o estilo quanto o escopo emocional foram ampliados. Fico muito feliz de ver que “Pobres Criaturas” (Poor Things) veio para marcar de vez a nova fase mais madura na filmografia do diretor.
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Visualmente, a fotografia pode até remeter a “A Favorita”, mas já nas primeiras cenas ele estabelece a diferença de como cada filme usa recursos parecidos de maneira diferente. Aqui, o uso frequente do preto e branco, grandes angulares e a divisão em capítulos são técnicas aplicadas para uma construção sensorial do mundo de Bella Baxter (Emma Stone), uma jovem Frankenstein moderna que, devido a um cérebro de bebê e o crescimento acelerado do mesmo, descobre as convenções sociais do mundo aos poucos, na mesma medida que as rompe.
Lanthimos entrega todos os elementos das peculiaridades de Bela, e talvez o melhor exemplo disso (além dos já citados acima) venha nos desarranjos iniciais da trilha e no refinamento que ela passa conforme a personagem amadurece. É tudo bem meticuloso para acompanhar os movimentos estranhos dos gestos ou das digressões da fala da atriz sem desumanizá-la ou a transformar num artifício simplista de humor físico. O olhar do diretor para com a personagem é muito dócil e a conduz à humanidade, justamente para depois usá-la como contraste do mundo.
Conforme Bela amadurece e conhece o mundo, algo simpaticamente marcado pela saída do preto e branco para o colorido, o longa começa a explorar a jovem enquanto agente disruptora. Alheia às normas sociais, cada novo ambiente oferece à narrativa novas possibilidades, tanto de explorar um humor mais textual, muito marcado pelo diálogo no restaurante com ela sendo obrigada a repetir as mesmas três frases, quanto de discussões sociais acerca de dinâmicas sociais de gênero. É interessante reparar como o personagem vivido por Mark Ruffalo tem um interesse sexual por ela enquanto ela está num estado mais infantilizado mentalmente e, conforme a maturidade e o conhecimento chegam, ele vai se tornando cada vez mais infantilóide.
Característica essa que é compartilhada por boa parte das figuras masculinas do longa. Os homens desejam Bela como objeto e/ou uma “novidade” nos ambientes, mas nunca oferecem nada além de controle a ela. As novidades oferecidas por esses personagens logo se mostram vazias ou limitantes conforme a jovem morta-viva tem mais contato com diferentes cidades ao redor do mundo, sempre rompendo com seus paradigmas.
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O uso do sexo é bem emblemático disso; ele existe em cena unicamente no ponto de vista dela. Não à toa, na maioria das cenas, são intercalados planos gerais com zoom ins na jovem ou cortes diretos para closes de seu rosto. Mais importante do que a transa em si é a relação que Bella cria através dela, seja por prazer ou até questionamento do controle tipicamente masculino na cama.
“Pobres Criaturas” é, no fim, um trabalho definidor na filmografia do diretor. Marca o encontro de seu olhar ácido para convenções sociais com um olhar dócil para personagens e o quão agridoce essa mistura pode ser.
“Pobres Criaturas” está disponível nos cinemas brasileiros.